O livro “Para que serve?” de José Maria Vieira Mendes e Madalena Matoso (Planeta Tangerina) provoca as pessoas leitoras para a observação das coisas que fazem parte do nosso mundo e da forma como nos relacionamos com essas coisas. Quando estamos perante algo novo ou desconhecido perguntamos pelo seu nome (o que é? ou como se chama isso?) e se o nome não for esclarecedor: “então e serve para quê?”.
Há coisas cujo nome responde ao “para que serve?”: o corta-unhas, por exemplo. Já os óculos precisam de um olhar mais atento 😆 O agrafador anuncia a sua missão no mundo, assim como o furador. Por sua vez, a chave precisa da fechadura e esta da porta. Até agora descrevi coisas úteis, ou seja, coisas cuja utilidade será reconhecida pela grande maioria das pessoas. Mas o título do artigo anuncia e denuncia que o tema aqui é outro: as coisas inúteis.
Serão as coisas inúteis necessárias?
E o papel da filosofia é, precisamente, revelar aos homens a utilidade do inútil ou, se assim quisermos, ensiná-los a distinguir entre um sentido e outro da palavra “útil”.
Pierre Hadot, Exercices Spirituels et Philosophique Antique
No manifesto A Utilidade do Inútil, Nuccio Ordine define útil como “tudo aquilo que nos ajuda a tornarmo-nos melhores” (p. 7). Parece-nos algo muito nobre e belo, porém a realidade passa o tempo a cutucar-nos com orçamentos, limites, necessidades de receita, procura de lucro. Perante uma crise somos assaltados pela austeridade que torna as coisas difíceis ainda mais difíceis – até a missão de nos tornarmos melhores. Caso tenhamos de definir prioridades, será que as coisas inúteis ocupam os primeiros lugares dessa lista?
Outra questão pertinente prende-se com a associação de ideias que fazemos entre as coisas inúteis e, por exemplo, a profissão ou a ocupação de cada pessoa. Aprender uma língua como o latim ou o grego só se afigura como algo útil se formos estudantes de filologia ou tivermos a intenção de investigar textos clássicos num contexto académico. Para alguns, aprender o teorema de Pitágoras é algo que deve ser arrumado na gaveta das coisas inúteis. Mas não são a maioria:
Serão inúteis os argumentos?
(…) é nos meandros das actividades consideradas supérfluas que podemos sentir o estímulo para pensar um mundo melhor, para cultivar a utopia de conseguir atenuar, quando não eliminar, as disseminadas injustiças e as penosas desigualdades que pesam (ou deveriam pesar) como um rochedo nas nossas consciências.
Nuccio Ordine, A Utilidade do Inútil, p. 15
No livro Sem fins lucrativos, a filósofa Martha C. Nussbaum defende a ideia de que a democracia precisa das humanidades. Mais concretamente no capítulo IV, A Pedagogia Socrática, a filósofa defende a importância do argumento. Recorda o mestre de Platão, Sócrates e a sua célebre frase: a vida não examinada não vale a pena ser vivida referindo que nem todas as pessoas praticam a máxima socrática. Além disso, há pessoas que além de não se auto-examinarem, não respeitam os outros no momento do debate. Exemplo disso são os debates políticos que acabam por ter como foco ganhar ou marcar pontos, derrotar o outro.
Falhamos pois não conseguimos encontrar pontos em comum ou plataformas de entendimento para construir um diálogo com os outros. Fazemos poucas perguntas para conhecer o pensamento do outro. Para isso será necessário fazer um exercício – que alguns diriam ser inútil – de compreender e até procurar pontos de defesa para uma opinião contrária à minha. Este exercício, além de ser uma técnica de trabalho filosófico, é também uma forma de humanizar o outro, a pessoa que defende algo oposto à nossa ideia.
A ideia de que cada um assumirá a responsabilidade pelo seu próprio pensamento, trocando ideias com os outros numa atmosfera de mútuo respeito pela razão, mostra-se essencial para uma resolução pacífica das diferenças, seja a nível nacional seja num mundo cada vez mais polarizado pelo conflito étnico e religioso.
Martha C. Nussbaum, Sem fins lucrativos, p. 99

Serão inúteis os espaços de diálogo?
Quando o mundo acorda com uma guerra a explodir no continente europeu é legítimo perguntar: serão as palavras inúteis? O que posso eu fazer além de desejar e esperar pelo melhor, enquanto assisto a rodadas de negociações que se afiguram como inúteis para a paz – e muito úteis para manter a guerra?
No livro A vida do espírito, Hannah Arendt menciona o trabalho que fez a propósito do julgamento de Eichmann em Jerusalém. Arendt procura reflectir sobre a forma como Eichmann se relacionava com o mal que o próprio provocou. Vale a pena ler as palavras da filósofa:
Os actos eram monstruosos, mas o agente (…) era absolutamente vulgar, nem demoníaco nem monstruoso. Não havia nele nenhum sinal de convicções ideológicas firmes ou de motivos maldosos específicos, e a única característica notável que se podia detetar no seu comportamento durante todo o julgamento e durante todo o período de investigação policial anterior ao julgamento era algo de inteiramente negativo: não era estupidez mas irreflexão.
Hannah Arendt, A vida do espírito, p. 14
Eichmann tinha adquirido rotinas e cumpria ordens. Não reflectia sobre o que fazia, reproduzia os códigos e as convenções a que estava sujeito e apresentava uma ausência de pensamento. Esta ausência de pensamento faz parte da minha e da sua vida, pois nem sempre temos tempo para parar para pensar e para nos dedicarmos a coisas inúteis.
Por vezes, é mais fácil esta prática quando estamos em grupo, quando estamos com os outros – assim como Sócrates fazia pela cidade de Atenas, juntando-se a outras pessoas para dialogar e tentar definir e entender o amor ou a justiça. Segundo Nussbaum, o pensamento socrático é uma prática social. Nesta medida, os inúteis espaços de diálogo revelam-se úteis para que possamos reflectir, pensar sobre o nosso pensamento, criar distância face às nossas ideias e procurar uma posição o mais clara possível sobre o assunto. É também o diálogo e o outro que nos tornam mais conscientes de que somos falíveis e que o nosso discurso não está imune às falácias.
Nuccio Ordine termina o livro que provocou a reflexão presente neste artigo da seguinte forma:
(…) a pretensa inutilidade dos clássicos pode revelar-se, ao invés, um útil instrumento para recordar – a nós e às gerações futuras, àqueles seres humanos prontos a deixarem-se inflamar – que a posse e o lucro matam, ao passo que a busca desvinculada de qualquer utilitarismo, pode tornar a humanidade mais livre, mais tolerante e mais humana.
Nuccio Ordine, A Utilidade do Inútil, p. 151-152
Não me ocorrem palavras mais úteis (ou inúteis?) para concluir esta reflexão.
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Excelente artigo Joana. Já li o livro de Nuncio Ordine há algum tempo, é sempre refrescante voltar a ele, pelo olhar de uma filósofa.
Obrigada!